Passado Sangrento - Capítulo I

Darkmoon fora imaginosamente derrotado. Fora um inimigo brutal, muito mais do que uma alucinação, um pesadelo ou uma ameaça espectral. Uma sombra perversa que acompanhou aquelas duas “almas” durante cento e noventa anos. Foi o responsável pelas suas derrotas, mas também, pelos seus êxitos. Afinal, ele manteve-os vivos para que as suas vidas, apenas a “ele” pertencessem. Só Assim poderia pôr fim à sua longa e espinhosa caminhada: vingar a sua morte e retornar à vida. Darkmoon estava finalmente morto! Ricardo e Acácio Trigueiro ficaram para sempre unidos pelo condão mágico da vida: A amizade.
Acácio Trigueiro temia em deixar de respirar para sempre. Estava já a ficar sem visão e as suas pernas badalavam, enquanto aquela garra lhe comprimia a vulnerável veia jugular, não exibindo vontade de afrouxar.
Acácio não tinha hipóteses de altercar. Conhecia o opositor. Já o tinha defrontado há cento e noventa anos atrás. Derrotara-o, é certo, mas agora ele estava mais forte, mais eficaz e regressara com uma voraz sede de vingança.
-Onde está ele? – Berrou o ser hediondo.
Em sufoco, Acácio tentou responder, mas não conseguia sequer respirar. Sentiu, por breves momentos um alívio na sua garganta, mas ainda assim, continuava sufocado.
-Diz-me!... Onde está? – Insistiu a “coisa”.
-Não sei, imbecil! - Respondeu ele com dificuldade.
-Então morre, “Albuquerque”! – Roncou, arrojando a cabeça do velho Acácio contra uma lápide, deixando-o imobilizado no chão, a esvair-se em sangue. A criatura distanciou-se vagarosamente do local. Galgou para o seu imponente cavalo e partiu a galope, afastando-se rapidamente, largando um rasto de poeira que se confundiu com o nevoeiro denso e úmido que se abatera na noite. Era um ser sinistro. Estava mais assustador do que nunca. O velho Acácio não queria acreditar no que lhe estava a acontecer. Ainda tombado no chão, sentiu-se a desfalecer. Reviu a sua vida a trespassar-lhe a memória. Recordou-se dos seus filhos, ainda crianças; lembrou-se do seu casamento. Fixou o olhar na lápide da sua defunta e amada Filomena. Depois reviveu a sua juventude a bordo do submarino Albacora, onde navegara inúmeras vezes, e combatera durante a guerra Colonial, como 1º sargento.
Como vou fazer para encontrá-lo antes da coisa? - pensou.
Teria de ser mais inteligente. Deixaria que a sua alma o guiasse e conduzisse até aquele inocente que vivia o seu dia-a-dia sem imaginar o “mal” que agora o procurava.
Enquanto pensava nisto, Acácio reuniu forças para se levantar. Segurou-se à lápide onde jazia a sua eterna amada e pôs-se de pé. Sangrava abundantemente do flanco esquerdo da cabeça. Olhou em redor e examinou o ambiente sinistro que o cemitério emanava. As cores do crepúsculo tinham sido rendidas por uma lua tenebrosa, e a noite parecia mais escura do que nunca. Escutou o ribombar de um trovão e aguardou que o refrigério da chuva lhe acariciasse o rosto velho.
Cambaleante, com a sua longa gabardina despregada ao vento, Acácio parecia um “zombie” a escapar de um jazigo. De facto, ele era isso mesmo: um ser moribundo, entre a estreita linha que separa a vida da morte. - Vou encontrá-lo, antes “dele”! – Jurou em voz alta, enquanto procurava um portão para abandonar aquele local medonho.
A manhã despertara pálida e chuvosa. O ambiente na escola secundária das “Cavaquinhas” estava agitado. Os alunos faziam greve, reivindicando melhores condições nas salas de aulas, onde chovia sempre durante o inverno. Seguidamente, os ânimos exaltaram-se, e a policia começou a “aconchegar” alguns alunos mais atiçados, o que fez com que Ricardo Gonçalves abandonasse o local, e voltasse para casa a fim de evitar confusões.
As aulas tinham começado há pouco mais de um mês, mas Ricardo já estava enfadado da escola, dos professores e até da sua própria turma. Órfão de pais, vivia no Seixal com os seus Tios, José e Magda. Sobrevivera a um violento acidente de viação quando tinha nove meses. Não se lembrava de nada, mas sabia que tinha sido dessa forma trágica que os seus pais tinham falecido.
Ricardo seguiu a pé até casa, pois esta distava apenas um quilômetro da escola. Caminhou, aparentando ser um rapaz alegre, mas na realidade, não era. Por vezes, ficava tenso e sombrio. Especialmente, quando era atormentado por pesadelos. Não eram pesadelos vulgares. Acordava sempre muito confuso, sem saber o que tinha acabado de sonhar. Depois permanecia alguns minutos a tentar diferençar o que era sonho e o que era realidade. Durante o dia, esforçava-se por não pensar nos pesadelos que o atormentava de noite.
Olhou em várias direções antes de atravessar a estrada, mas logo que lhe pôs o pé, foi surpreendido por um ronco de um carro acelerado, que surgiu logo a seguir à curva. Para surpresa dele, a viatura deteve-se mesmo à sua frente.
Ricardo olhou de soslaio, e a sua mente criativa fê-lo imaginar se aquele individuo não seria um agente do “SIS” (Serviço de Informação e Segurança), que andava a seguir os manifestantes para os identificarem, e seguidamente, prenderem. O jovem estudante sentiu-se pouco à vontade e sem reação, mas ainda teve tempo de observar a viatura que o seguira. Era um “Mercedes” preto. Fixou também o rosto do condutor. Tinha uma fronte velha, um rosto barbudo e usava um boné preto. O estranho fumegou o seu cachimbo de “roseira brava”e fixou-o com um ar ameaçador. Depois arrancou com o carro numa velocidade moderada, abandonando a rua subtilmente. Confuso, sentou-se no passeio; respirou profundamente e visualizou mentalmente, o rosto do homem, mas pareceu-lhe estranhamente inofensivo. Decidiu ignorar o incidente e voltar para casa.
Quando chegou à residência, Ricardo fitou a sua tia Magda no exterior do quintal a borrifar as sebes ornamentadas com cameleira.
-Olá Tia. Estou um pouco cansado. Vou pró meu quarto. – Disse vagamente.
Arremessou a sua mochila para o canto e caiu estatelado na cama. Olhou para o teto, e ainda matutou durante algumas horas no que lhe acontecera, mas sentia-se tão extenuado que acabou por adormecer. A acalmia da noite fora interrompida pelo latir de um cão. Não era um ladrar normal, algo se passava lá fora. Levantou-se apavorado, ficando na dúvida, se devia descer ou ficar protegido e resguardado no seu quarto. Algo invadira a casa. Não era alguém, era “algo”. Susteve a respiração durante alguns segundos para poder escutar melhor o que estava a acontecer. Pareceu-lhe ouvir um arrastar pesado. Aproximava-se vagarosamente do seu quarto e vinha matá-lo. Decidiu fugir. Era a única solução que lhe restava. Abriu a janela, galgou o parapeito e saltou para a cobertura onde balouçou, tentando obter algum equilíbrio. Tomado pelo terror, tomou balanço e saltou para o chão. Era uma queda de três metros, mas se aquela “coisa” o apanhasse, certamente seria bem pior.
Caiu no chão duro e sentiu o tornozelo estalar. Conseguiu levantar-se e afastou-se, penetrando no pinhal que se estendia atrás da sua casa.
Ricardo correu até não poder mais. Estava ofegante e exausto, pois já não tinha fôlego. Decidiu parar. Ouviu Dingo (o seu cão e amigo) a ladrar. O latido fora interrompido por um ganido agudo e doloroso. Aquela coisa tinha esquartejado o pobre Dingo. Fez-se um silêncio de morte, e apenas o rumorejar do vento arrefecido entre as vinhas espessas, mantinha desperto o silêncio da noite. Nem os excêntricos espantalhos que guardavam a plantação se moviam. Pareciam ter horror do que se aproximava. Já não restava fôlego nem forças ao pequeno para se mover. O seu tornozelo também não suportava mais. Começou a arrastar-se, fazendo impulsão com os braços, puxando o resto do corpo para a frente. Os caniçais começaram a mover-se. Algo caminhava na sua direção. Acolheu uns pingos úmidos na testa. Começou a chover imaginou; Olhou para cima e gelou-lhe o sangue ao avistar a criatura monstruosa que o contemplava, encharcada em algas e empastada com musgos lamacentos. O ser agarrou-o pelo pescoço com violência, e ergueu-o até ao nível da sua face desfigurada. Quando Ricardo olhou de frente para o opositor, soltou um grito gutural de terror.
-Ricardo, Ricardo! – Era a tia Magda quem o abanava bruscamente – Você tava tendo um pesadelo, meu querido. Calma!
-Tia Magda!... Que pesadelo horrível! – Balbuciou ele, enquanto despertava confuso e amedrontado.
Passou a mão pelo cabelo e pela testa; estava alagado em suor; tentou recordar-se do pesadelo e do rosto daquela coisa, mas rapidamente a imagem fugiu-lhe.